Em 26 de junho de 1968, acordei animado com as evidências de que aquele passeata seria bem maior que as ocorridas desde 29 de março, quando o estudante Edson Luiz de Lima Souto foi assassinado durante a invasão do restaurante Calabouço pela Polícia Militar. Vesti o uniforme de guerrilheiro em gestação — calça jeans desbotada, camiseta preta, blusão de marinheiro, sapatos rústicos — e fui para o aquecimento na Faculdade Nacional de Direito. E caprichei na pose de 3* vice-presidente do Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, o CACO LIVRE, ao saber que fora incluído no esquema de segurança de Wladimir Palmeira, a maior celebridade do movimento estudantil no Rio. Não entendia do ofício de guarda-costas, mas tinha mais de 1 metro e 80, critério que orientou a montagem do grupo. Eu teria sido reprovado se pontualidade também fosse pré-requisito. Havia tanta gente no caminho do palanque improvisado na escadaria da Assembléia Legislativa que cheguei dez minutos além do horário aprazado e fui barrado pelo esquema de segurança.
Fiquei zanzando por ali, nem tão perto dos líderes quanto desejava nem tão longe que deixasse de ouvir o suficiente para descobrir se mede as dimensões de uma manifestação. “Aqui tem cem mil pessoas!”, alguém exclamou com a convicção de um diretor do Datafolha. “Na Cinelândia não cabe tanta gente”, ouvi a voz da sensatez. “Tem cem mil”, encerrou a conversa Vladimir Palmeira. Aprendi naquele momento que passeatas têm o tamanho que os seus condutores querem que tenham. Também aprendi que aos olhos dos comandantes a realidade, por mais superlativa que seja, sempre parece acanhada. Não se vira naquele ano nenhuma multidão comparável à reunida na praça, e tanto bastaria para conferir contornos históricos àquele 26 de junho. Mas ai de quem ousasse calcular que eram 99 mil os participantes da Passeata dos Cem Mil, com iniciais em maiúsculas e cifras por extenso. Todos os sonhos pareceram tão próximos que talvez nem esperassem pelo Natal para se concretizarem. O Ato Institucional n* 5 chegou primeiro. Grandes manifestações de rua às vezes prenunciam o triunfo. Mas podem ser a antecipação da vitoriosa contra-ofensiva inimiga.
A gente não tinha nem mesmo um projeto de poder”, afirmou Wladimir Palmeira em maio de 2008. Errado. Os líderes do movimento estudantil (e, sobretudo, seus mentores na clandestinidade) tinham um projeto, sim: queriam derrubar a bala a ditadura militar e implantar a ditadura do proletariado. Para
Quem não tinha projeto de poder era a “massa de manobra”, como se referiam os chefes à multidão de jovens ingênuos, generosos, anônimos, que repetiam palavras-de-ordem cujo real significado ignoravam e cumpriam ordens e instruções vindas de cima. Os soldados rasos lutavam pela liberdade. Os comandantes planejavam suprimi-la. O rebanho sonhava com a ressurreição da democracia. Os pastores queriam muito mais, confirma Daniel Aarão Reis, ex-militante do MR-8, ex-exilado e hoje professor de História na Universidade Federal Fluminense.
“As esquerdas radicais não queriam restaurar a democracia, considerada um conceito burguês, mas instaurar o socialismo por meio de uma ditadura revolucionária”, fala de cadeira Aarão Reis, principal ideólogo de uma dissidência do PCB que desembocou no MR-8. “Não compartilho da lenda segundo a qual fomos o braço armado de uma resistência democrática. Não existe um só documento dessas organizações que optaram pela luta armada que as apresente como instrumento da resistência democrática”.
Recrutados na massa de manobra, os alunos dos cursinhos intensivos de revolução ainda estavam na terceira vírgula de O Capital e no quinto parágrafo de Engels quando descobriam que desistir das aulas semanais era crime sem perdão. “Ele desbundou”, desdenhavam os mestres de qualquer discípulo sumido. Meia dúzia de panfletos de Lenin depois, os aprendizes descobriam que se haviam tornado oficiais do exército mobilizado para sepultar o capitalismo e conduzir o povo ao paraíso comunista.
Muitos se diplomavam sem sequer desconfiar da grande missão. Mas gente como Vladimir Palmeira tinha idade e milhagem suficientes para saber que perseguia um regime ainda mais selvagem, brutal e infame que o imposto ao Brasil. Conviviam com tutores de larga milhagem. O sessentão Carlos Marighela, por exemplo, ensinava aos pupilos da ALN a beleza que há em “matar com naturalidade”, ou por que “ser terrorista é motivo de orgulho”. Deveriam todos orgulhar-se da escolha feita quando confrontados com a bifurcação escavada pelo AI-5.
A rota certa era a esquerda, avisavam os que nunca tinham dúvidas. Passava pela luta armada e levava à luz. A outra era a errada. Passava pela rendição vergonhosa e levava à cumplicidade ostensiva com os donos do poder. Ou, na menos lamentável das hipóteses, aos campos da omissão onde se amontoavam desertores da guerra justa. A falácia foi implodida pelos que se mantiveram lúcidos, recusaram a idiotia maniqueísta e percorreram o caminho da resistência democrática.
Estivemos certos desde sempre. Desarmados, prosseguimos o combate contra quem os derrotara em poucos meses. Enquanto lutávamos pela destruição dos porões da tortura, eles se distraíam em cursinhos de guerrilha ou no parto de manifestos delirantes. Estavam longe quando militares ultradireitistas tentaram trucidar a abertura política. Só se livraram do cárcere e do exílio porque conseguimos a anistia, restabelecemos as eleições diretas e restauramos a democracia. Nós vencemos. Eles perderam todas. Alguns enfim conseguiram tornar-se contemporâneos do mundo ao redor. Quase todos permaneceram com a cabeça estacionada em algum lugar do passado. E voltaram com a pose dos condenados ao triunfo.
Fantasiados de feridos de guerra, os sessentões de 68 se apropriaram de indenizações milionárias, empregos federais, mesadas de filho mimado. Com a velha arrogância, seguem convencidos de que quem está com eles tem razão. Passa a fazer parte da esquerda, formada por guerreiros a serviço das causas populares. Quem não se junta ao bando é inimigo do povo, lacaio dos patrões, reacionário, elitista, golpista vocacional. O comportamento e a discurseira dos dirceus, franklins, dilmas, genoínos, palmeiras, garcias, tarsos, vannuchis e o resto da turma confirmam: passados tantos anos, estão prontos para errar de novo. Infiltrados no governo de um presidente que não lê, não sabe escrever, merece zero em conhecimentos gerais e faz qualquer negócio para desfrutar do poder, eles aparelharam o Estado e vão forjando alianças com o que há de pior na vizinhança para eternizar-se no controle do país. Se não roubam , associam-se a ladrões. Se não matam, tornam-se comparsas de homicidas.
Sequestradores da liberdade e assassinos da democracia jamais deixam de sonhar com o pesadelo. Não têm cura. Nenhum democrata lhes deve nada. Eles é que nos devem tudo, a começar pela vida.
passeatas foi publicado primeiro em: https://veja.abril.com.br/